Uma semana com Santa Catarina



Uma semana com Santa Catarina

O que esperava ser apenas uma semana que usaria para esquecer das turbulências do vestibular, com a minha família que morava em Santa Catarina, mostrou ser dias de preocupações e medos.
Viajamos de Curitiba (cidade onde tenho residência fixa) para Gaspar (Santa Catarina), onde meu irmão mais velho e minha tia moram, na semana do feriado de 7 de setembro, pois eu, com 17 anos, não tinha aula e queria, junto da minha mãe e irmã, descansar daquela loucura do vestibular.
A cidade de Gaspar fica na região Centro-Norte de Santa Catarina, conhecida por ser uma cidade industrial, mas pequena, não ultrapassando a marca de 50 mil habitantes. O centro urbano é marcado pelos rios que cortam a cidade e formam uma teia de ligações com correnteza forte e instável, sendo isso a responsável pelo apelido de "Cidade das Pontes". Não precisamos ser muito atualizados para saber que o estado catarinense sofre com as enchentes nos últimos anos, basta que chova mais que uns três dias seguidos e o estado explode em alertas de emergências.
É nesse contexto que minha história se passa:
Chegamos no domingo, 04, com intensa alegria, todos morrendo de saudades, abraçando-se, beijando-se, todos comemorando o encontro. Já estava guardando as blusas nas malas, pois o calor era estupendo. Na segunda feira aproveitei para estudar um pouco e tentar por a matéria em dia, admito que não deu muito certo e também não fiz muito esforço para que desse. Esse negócio de prova que decide o futuro deixa qualquer um pirado, além da pressão dos pais, há sempre aquele olhar da sociedade sobre aqueles que não acometem o sucesso nessa experiência. O resto do dia foi tranquilo, todos percebemos que o tempo estava mudando e eu, mesmo sabendo do histórico de problemas da cidade como enchentes e enxurradas, comecei a brincar de pedir para São Pedro um pouco de chuva para sua amiga Santa Catarina.
Eu e meu irmão fomos para o "centro" da cidade, só para constar: a pé, debaixo daquele calor infernal de 36 graus Celsius, para achar algum lugar que concertasse o Play Station 2 dele que tinha estragado a lente óptica. Depois de caminhar meia hora achamos um lugar que ele achava confiável. Sério, acho que eu perdi uns 2 litros de suor, o que era bom porque tinha que emagrecer, visto que na semana seguinte eu teria consulta com uma nutricionista que, além de ser chata tinha seus preconceitos contra o que a sociedade chama de feio.
Voltamos para casa desanimados porque o vídeo game só ficaria pronto dali uns dias e como estávamos sem internet não teríamos outra distração se não estudar ou assistir filmes. Durante noite a temperatura caiu muito e a garoa começou a umedecer aquele ambiente seco. Eu agradeci várias vezes antes de dormir.
Z Z Z Z Z Z Z Z Z

A rua era a principal da margem esquerda do rio que cortava a cidade ao meio, mas também era de paralelepípedo. Por isso que na terça-feira pela manhã tive que levantar cedo, o barulho dos carros passando pela rua era insuportavelmente irritante. Garoara a noite inteira e pela manhã o céu começou a ficar roxo, a correnteza já começava a dar sinais de tragédia. Minha tia que já havia passado por uma inundação e uma enxurrada, começou a monitorar a profundidade do rio, pois a casa era na beirada.
Tomamos café na varanda e comecei a me preparar para mais uma manha de estudos em casa. Não estava no clima, mas sabia que era preciso. História e Geografia são as minhas matérias favoritas, portanto comecei por elas. A chuva começou a cair forte, o vento rugia no bambuzal que separava a casa do rio. Comecei a assoviar no ritmo da monotonia daquela manhã, sentia-me grotescamente no clima chato do aprendizado, tudo correu perfeitamente parado até que começaram os problemas. Estava caindo tanta água que o telhado e a calha não aguentaram e as goteiras na varanda apontaram por todos os lugares, inclusive na mesa onde estavam meus livros, começou então a correria para juntar todo o meu material e botá-los para secar. Em seguida recebemos a noticia de que o concerto do play sairia 135 reais, o olho da cara.
Não havia nada que poderíamos fazer, aproveitei e fui numa lan hause que tinha na frente da casa, eu e minha irmã tivemos que ficar esperando para que dois computadores ficassem vagos, mas valeu a pena, estava sentindo falta daquele mundo virtual. Minha droga, meu vicio cibernético. Aproveitamos e fomos até a loja de eletrônicos para pegar o aparelho que estava no concerto, conseguimos até um desconto de 15 reais, mas isso não era sinal de sorte perto do azar que viria depois.
Havíamos comprado para meu irmão dois jogos do video game: Bombermen e Liga da Justiça, resumindo, o primeiro era em japonês e não conseguimos jogar, já o segundo fora vendido como de play station 2 enquanto era de Nintendo Wii, lá vinha a sorte batendo a porta na nossa cara novamente. O resto da terça feira correu tranquilo, sem pensar na chuva que continuava a cair insistentemente.
Não consegui dormir direito na virada da noite, pois tive que dormir com a minha mãe no chão da sala, e pasmem, ela ronca. Depois de uma noite mal dormida chegou a quarta-feira que era o dia do feriado propriamente dito, os planos de ir até Blumenau para ver os desfiles e fazer compras foram por água abaixo literalmente, pois a cidade já dava sinais de fraqueza. Ainda não estávamos preocupados com a chuva, ou pelo menos eu não estava e o resto não parecia estar também. Tenho que admitir que o meu dia foi ridículo, eu sentei na frente do vídeo game às 10 horas da manhã e saí as 11 horas da noite, e meu dia se resumiu a isso, com exceção das refeições e das vezes que tive que enxugar a louça.
Minha mãe já estava preocupada com o nível do rio que praticamente dobrara e já fazíamos planos para adiantar a nossa volta em um dia, ou seja, voltaríamos no sábado pela manhã. A noite foi horrorosa. O calor voltou, minha mãe ficou sarapateando pela casa porque não conseguia dormir de preocupação e o pior, tinha uma raposa no forro da casa! Ela estava fazendo a maior bagunça, o barulho dela raspando o forro era de trincar os dentes, ninguém conseguia dormir. Sem contar o medo de que ela conseguisse descer, já imaginou uma raposa selvagem, o que ela poderia fazer? A resposta é nada.... De tanto ela correr em cima do telhado, ela conseguiu derrubar a portinha que tinha para subir no forro e adivinha quem que teria que subir para coloca-la no lugar? Eu. Tenho de admitir que estava com muito medo de ela me atacar, ficava imaginando ela como aqueles animais espumando de raiva com aqueles olhos compenetrantes, e talvez ela até fosse assim, mas acabei ficando estático e não consegui ir adiante. Por fim, minha tia, num ato de bravura, salvou a todos e colocou a portinha no lugar. Ufaaaa, podíamos tentar voltar a dormir em paz, eram umas 3 horas da manhã quando consegui pegar no sono novamente.
Como estava com medo mesmo, acabei sonhando com o acontecido, nele a raposa conseguiu abrir a porta outra vez, só que todos estavam dormindo e não viram, ela acabou entrando na casa e atacou o quarto da minha tia, e começou então uma cassa pela raposa vermelha, depois de muitos arranhões e esbaforidas conseguimos pegá-la, e o resultado, ela parecia com um filhote de rotwiler fofinho, e acabamos dando o nome de Mel. Acordei de supetão me achando um retardado pelo sonho, mas até que foi legal.
**************************

A quinta-feira foi um dos piores dias da minha vida, primeiro porque acordei já com a minha tia com o rádio no ouvido porque com os raios, caiu o sinal da televisão. Já estavam noticiando que Blumenau decretara estado de calamidade. Lembro-me perfeitamente o nome do radio-jornalista, era Júlio, ele já começou a citar os bairros de Gaspar que estavam alagados. A defesa civil deu inúmeras recomendações como guardar os documentos em sacos plásticos, subir os móveis, sair das áreas de deslizamentos (nosso caso), etc. Minha mãe já estava ligando para a rodoviária para mudar nossa passagem para sexta-feira de manhã. O rio cresceu muito em volume, subia quase 30 centímetros a cada hora, e a chuva nem dava sinais de trégua. A barragem de Taiporã já estava com a água a dois metros acima do que suportava e teriam que abrir as comportas, o que prejudicaria muitas cidades que ficavam no leito daquele rio. E assim as notícias seguiam, sempre trazendo mais desastres em todo o estado.
Eu nunca estive em tal situação, estava com medo por nossas vidas. Mais e mais a cidade ficava ilhada, a ponte que ligava os dois lados da cidade estava correndo riscos porque árvores inteiras que vinham com a correnteza prendiam na estrutura e era questão de tempo para que pedaços de casa também aparecessem. As estradas que eram caminho para voltar para o Paraná estavam todas afetadas por desbarrancamentos e acidentes, a rodoviária da cidade estava alagada e Blumenau que seria a ultima saída estava inteira debaixo d’água.
Escutamos um barulho horrível e corremos para ver, tínhamos medo que a beirada tivesse caído para dentro do rio, pois a distância da varanda até o barranco do rio era de pouco mais que um metro, mas o que vimos foi um pedaço do terreno do vizinho se perdendo dentro da agua. O vizinho por sua vez era irmão da minha tia, corremos todos para ajudar, felizmente não chegou ate a casa. Já o outro vizinho estava com um pedaço da casa pendurada, e logo chamou um caminhão para salvar os móveis.
A cidade inteira estava agitada, procurando segurança na casa de parentes, tentamos ir embora naquele mesmo dia, mas já não era mais em tempo. O cenário ficou cada vez mais preocupante, não aguentava mais ouvir as noticias do Júlio pela rádio, muito menos o jornalista da televisão, o rio já estava em 7 metros e a previsão era pra 9 metros perto da meia noite, se chegasse aos 11, provavelmente pegaria a nossa casa. Minha tia ligava o tempo todo para os parentes procurando lugares para ficarmos, chegando a noite, ela pediu que fossemos para a casa do seu outro irmão que ela e minha mãe ficariam vigiando a casa acordadas. Não quisemos separar-nos delas e ficamos por lá. Elas ficaram na sala e eu e minha irmã fomos para o quarto, as rachaduras nas paredes eram medonhas, dependendo de qual, um cigarro entraria facilmente.
Eram sinais de que terreno estava cedendo , os supermercados estavam lotados, os preços subiram muito e a cidade começaria a fazer racionamento de água, começou as 6 da tarde e ficaria até a manhã seguinte. Passamos a noite naquela agonia. Rezamos por todos que se encontravam naquela situação, era algo assustador. O desespero de não poder enxergar nada de noite nos deixava mais inseguros. A noite passou rápida entre cochilos e sonos.
Pela manhã o prefeito interditou a ponte e o cenário ficou deplorável: Pedaços de casas passavam pelo rio, móveis boiavam e o pior, uma vaca desesperada tentava se salvar naquela correnteza, a cena foi triste, era um animal que infelizmente não tinha mais salvação, acabou enroscada nas árvores e morreu espetada. As pessoas começaram a estocar gás para ter alguma fonte de energia, pois o apagão era iminente. A chuva felizmente cessara. Mas a neblina cobria toda a região, o fedor que vinha do rio era podre e só piorava a imagem. Ambulâncias e viaturas policiais passavam o tempo todo pela rua, sempre tentando socorrer a quem podia.
Minha mãe, minha irmã e eu resolvemos ir até a ponte para ver o que encontrávamos e o que vimos foi desumano: Sem contar o aglomerado de curiosos tirando fotos da ponte e do rio, a cabeceira da ponte havia sido danificada, e pudemos avistar um grande grupo de pessoas reunidas na igreja, que era a parte mais alta da cidade, provavelmente servindo como abrigo comunitário para os inúmeros desabrigados que estavam num dos três estágios de estado emocional: Desespero, Impotência e Raiva.
Apesar de tudo a cidade continuava tão viva quanto antes, parecia feriado na cidade, todos passavam na rua conversando alto contando as turbulências da noite anterior e assim surgiam os casos e causos da sabedoria popular. O dia correu tranquilo. Sem a preocupação de voltar a chover, as pessoas começaram a mobilizar-se para auxiliar amigos e parentes. Infelizmente o nosso retorno foi adiado para mais um dia, visto que a rodoviária estava alagada.
***********************

No sábado até saiu um solzinho, mas ainda não era possível voltar para casa! O prefeito chegou a decretar que os automóveis que passassem pelas imediações da ponte seriam multados, tamanho o numero de curiosos que trafegavam pela região atrapalhando as obras para liberar as ruas, pontes, e circulação de ônibus.
Por fim, voltamos no Domingo, eu, com a promessa de voltar só depois de alguns anos....